domingo, junho 14, 2009

A rapariga que arrumou com o Ahmadinejad

"O mais radical e revolucionário dos programas mobiliza as iranianas: soltar os cabelos

Nos anos 90, a Argélia agonizava de medo dos fanáticos. Em Blida, vi pais a reconhecer os corpos das filhas que haviam sido raptadas e decapitadas por jovens barbudos piedosos. Estes, antes de as violarem, casavam-se com elas para, eles, não cometerem pecado. Dessa década e desse país - estive lá por três vezes - assisti também a gestos de coragem. Falo da mais difícil, da quotidiana. Daquela que, por exemplo, alia o rasar as paredes ao regressar a casa e, todos os dias, assinar uma crónica de liberdade num jornal. Esse "bilhetista" que conheci em Argel, viria a ser morto e dele aprendi que nenhum repórter enviado às guerras longínquas pode pretender ser corajoso comparado com os locais que vivem, cada dia, a opressão.

Mas foi um gesto gracioso o que mais esperança me deu pela Argélia. Num restaurante de Argel que eu frequentava, reparei que a empregada, ao passar pelo grande espelho da sala, olhava os seus cabelos soltos, abanava a crina e gostava decididamente do que via. Desde esse dia, desde essa minha visão, eu soube que a Argélia, mesmo que um dia caísse sob o jugo dos barbudos, haveria de se libertar. Graças à rapariga dos cabelos longos.

Voltei a vê-la, ontem. Por um qualquer milagre - dos únicos em que acredito, porque têm os frágeis homens e mulheres por protagonistas -, a rapariga do restaurante de Argel estava no Irão. Ontem, foi capa do DN e do Público, e também de vários jornais europeus. Os óculos escuros, de marca, cortavam-lhe infelizmente o grande e belo nariz, mas lá estava a cara divina (desse único divino, tenho de o dizer?, de que sou devoto), sobrancelhas graciosas, boca polposa e carmesim, queixo firme. E, sobretudo, madeixas rebeldes de cabelos castanhos aos quais um lenço roxo e floreado não recatava mas expunha todo o esplendor feminino.

A rapariga de Argel agora iraniana mostrava as suas mãos como testemunho. A esquerda abria a cédula de identidade, onde se via a foto de um pequeno corvo submetido - ela própria, com o hidjab escondendo o que não devia. Mas a sua mão direita erguia o indicador, como o gesto de Adão, no fresco da Capela Sistina, à procura do sopro da vida. Ela acabara de votar e o dedo estava marcado do roxo que tão bem ia com a cor do lenço - a graciosidade, como vos tenho dito nesta crónica, é libertadora. Aquela foto - de facto, aquelas fotos, os benditos enviados das agências Reuters e AFP esmeraram-se com a rapariga, ter-lhes-á acontecido a mesma epifania que a mim no restaurante de Argel - aquelas fotos anunciaram os resultados definitivos, irrevogáveis e inevitáveis das eleições do Irão.

O pobre diabo, feio e baço do Mahmoud Ahmadinejad ousou dizer que foi ele que ganhou. Mas pelas últimas notícias oiço que faz sol nas ruas de Teerão, iluminando a verdade. A rapariga ganhou
."

Ferreira Fernandes

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