Além de redonda, a bola é totalitária
"Ganhámos." "Conseguimos o que todos ambicionávamos." "Parabéns aos portugueses." "Vamos à África do Sul." Peço licença para discordar: não ganhei nada, não ambicionava nada, não mereço parabéns e, excepto sequestro, é garantido que não irei, mesmo metaforicamente, a nenhum pedaço do hemisfério sul. Mas foi assim que os canais televisivos se me dirigiram quando os liguei após um jogo entre Portugal e a Bósnia. À hora que pelos vistos era a do jogo, eu estava em casa com amigos, a palrar sobre irrelevâncias que não incluíam o "professor" Queiroz. Excepto quando preciso de adormecer com urgência, nunca vejo futebol (três minutos daquilo e eis-me a ressonar). Por coincidência ou destino, os meus amigos também não poderiam importar-se menos com as conquistas da "equipa de todos nós", uma designação, de resto, assaz reveladora.
Visto que a equipa é "de todos nós", exclui-se à partida a possibilidade de alguns de nós genuinamente não lhe prestarem qualquer atenção. No máximo, admite-se que meia dúzia de casmurros finja não ligar à "selecção" e à bola em geral, quer para exibir "pseudo-intelectualismo" (um crime grave), quer para servir interesses obscuros. Na perspectiva do "mundo do futebol" (fascinante expressão), a hipótese do puro alheamento nem se põe.
Isto acontece porque o "mundo do futebol" é, na essência, totalitário. Um conhecido que trabalhou na produção de um dos 183 debates futebolísticos transmitidos pelas televisões contou-me que, durante o intervalo e depois das gravações, os participantes continuavam a conversa como se não estivessem em off e não houvesse outro tema. Para eles, de facto, não há, e acredito que, já de madrugada e nas respectivas camas, os sujeitos ainda se mantenham sob contacto telefónico, a fim de discutir a transferência do "médio-ala" Fábio Inocêncio ou o "losango" do Sporting.
Estão no seu direito? Completamente. O problema é que, do alto do seu suave autoritarismo, o "mundo do futebol" não concede esse direito aos outros. Um "telejornal" posterior ao Portugal-Bósnia mostrou o espanto do repórter perante a escassez de adeptos na praça do Marquês de Pombal. Na cabeça dele, era intolerável que milhões de cidadãos não enchessem as ruas do país em tresloucados festejos. Só não sei se o rapaz terminou a intervenção a pedir penas pesadas para os infractores porque, entretanto, adormeci."
Alberto Gonçalves
Visto que a equipa é "de todos nós", exclui-se à partida a possibilidade de alguns de nós genuinamente não lhe prestarem qualquer atenção. No máximo, admite-se que meia dúzia de casmurros finja não ligar à "selecção" e à bola em geral, quer para exibir "pseudo-intelectualismo" (um crime grave), quer para servir interesses obscuros. Na perspectiva do "mundo do futebol" (fascinante expressão), a hipótese do puro alheamento nem se põe.
Isto acontece porque o "mundo do futebol" é, na essência, totalitário. Um conhecido que trabalhou na produção de um dos 183 debates futebolísticos transmitidos pelas televisões contou-me que, durante o intervalo e depois das gravações, os participantes continuavam a conversa como se não estivessem em off e não houvesse outro tema. Para eles, de facto, não há, e acredito que, já de madrugada e nas respectivas camas, os sujeitos ainda se mantenham sob contacto telefónico, a fim de discutir a transferência do "médio-ala" Fábio Inocêncio ou o "losango" do Sporting.
Estão no seu direito? Completamente. O problema é que, do alto do seu suave autoritarismo, o "mundo do futebol" não concede esse direito aos outros. Um "telejornal" posterior ao Portugal-Bósnia mostrou o espanto do repórter perante a escassez de adeptos na praça do Marquês de Pombal. Na cabeça dele, era intolerável que milhões de cidadãos não enchessem as ruas do país em tresloucados festejos. Só não sei se o rapaz terminou a intervenção a pedir penas pesadas para os infractores porque, entretanto, adormeci."
Alberto Gonçalves
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