domingo, abril 24, 2011

América destabilizadora

"Há algo mais a dizer sobre o Egipto? Hosni Mubarak foi sacrificado para salvar o regime militar.

Há algo mais a dizer sobre o Egipto? Hosni Mubarak foi sacrificado para salvar o regime militar. Um “homem forte” que não consegue manter a ordem nas ruas não é útil para ninguém. Se a “democracia” o vai conseguir fazer é uma questão muito duvidosa. A julgar pelo que aconteceu no Paquistão, e no resto do mundo muçulmano, períodos de um governo civil (corrupto) alternam com golpes militares para “fazer a limpeza”.

Duvido que a maioria dos egípcios coloque o que nós chamamos de democracia no topo da sua agenda política. Os jornalistas que defendem o contrário não são uma amostra representativa, mesmo os dos países ocidentais. São de uma geração inquieta, que percorre as zonas mais problemáticas do mundo. A liberdade de expressão está-lhes no sangue; os protestos dão-lhes vida. Tentam transmitir o mundo como ele é, mas o seu mundo não é o da maioria das pessoas – o seu trabalho depende da interrupção do estado de coisas “habitual”. Assim, subestimam, muitas vezes, o desejo de lei e ordem (ou pelo menos de ordem).

Parece que a maioria das pessoas tolera um nível limitado de repressão política, incluindo polícia secreta, tortura e corrupção, se esta garantir segurança e o mínimo de prosperidade e equidade. De outra forma não há explicação para a longevidade de regimes ditatoriais como o de Mubarak, que esteve 30 anos no poder. Da mesma forma, no referendo que em 1990 colocou um ponto final aos 16 anos do seu governo no Chile, o general Augusto Pinochet, com milhares de desaparecidos e vítimas de torturas, surgiu com um programa de lei e ordem e recebeu 44% dos votos.

Para a maioria dos dirigentes ocidentais, a ideia de “transição para a democracia” é natural. É isso que eles querem que ocorra no Egipto, esperando que a democracia não coloque em perigo o tratado de paz com Israel. Mas a combinação de democracia e ordem – o bem mais precioso que o Ocidente deu ao mundo – nas democracias ocidentais é o produto de uma longa história e não pode ser replicado no curto prazo.

Os sistemas políticos não ocidentais são, normalmente, arcaicos: os bons governantes podem dormir descansados, enquanto os maus enfrentam o perigo constante de serem derrubados pelo exército ou pelas ruas. A maioria das pessoas dos países não ocidentais confiam nas virtudes pessoais do governante, e não nos limites institucionais do seu poder, para tornar as suas vidas toleráveis. Nós interpretamos como uma luta pela democracia o que, na realidade, é uma forma tradicional de libertação dos maus governantes.

Tudo isto exclui a possibilidade de mudança, em particular a mudança influenciada pelo papel destabilizador dos Estados Unidos no mundo. A ideia de que os Estados Unidos são uma potência que defende o status quo é uma falsa ilusão dos especialistas em relações internacionais. No curto prazo, os Estados Unidos actuam, naturalmente, como as outras potências. O país tem interesses a proteger, que muitas vezes, o obriga a apoiar regimes indesejáveis. Mas o seu projecto de longo prazo é refazer o mundo à sua imagem e semelhança.

Onde os Estados Unidos têm margem de manobra, pressionam sempre nesta direcção. E, apesar da ascensão da China e da mudança para um sistema internacional mais plural, os Estados Unidos continuam a ter o poder de alterar a “situação no terreno” em muitas partes do mundo, em particular no Médio Oriente.

Os especialistas sempre subestimaram o carácter expansionista da política estrangeira norte-americana, porque pensam na expansão do ponto de vista do mundo antigo: conquista, imperialismo e colonialismo. Os Estados Unidos não pretendem criar um império no antigo sentido da palavra: os Estados Unidos perseguem um imperialismo de valores que lhes são queridos.

Se todos os países tiverem os mesmos valores, o imperialismo tradicional torna-se obsoleto. Se bem que os Estados Unidos carecem, claramente, do poder de impor os seus valores pela força, têm, certamente, o poder de destabilizar as condições existentes seja através da atracção do seu “soft power” (o estilo de vida norte-americano) ou recorrendo à força exemplar.

Fui uma das pessoas que se opôs à invasão do Iraque em 2003. Actualmente, pergunto-me se estava certo. Certos aspectos da invasão e da ocupação deixaram, claramente, muito a desejar, pois causaram um número de mortos muito superior ao que era necessário. Mas alguém duvida que a invasão teve o efeito de abanar as peças, não apenas no Iraque, mas em todo o tabuleiro islâmico?

É por esta razão que não tenho a certeza de que as revoltas na Tunísia e no Egipto, que agora se espalharam a outros países de maioria muçulmana, possam ser, simplesmente, interpretadas como formas tradicionais de protestos contra maus governantes. Em todo o mundo muçulmano, há uma sensação de maiores possibilidades, especialmente entre os mais jovens: mais de metade dos oito milhões de habitantes do Egipto tem menos de 25 anos. Não há dúvida que este sentimento pode remontar à invasão norte-americana e queda forçada de Saddam Hussein.

No livro “Fausto” de Goethe, Deus envia à humanidade o Diabo (Mephistopheles) para que este agite a situação. As suas intenções são claras: “A natureza activa do homem, ao enfraquecer, procura demasiado cedo o equilíbrio. Aprende a ansiar o descanso completo; por este motivo, dou-lhe de boa vontade este companheiro que actua, excita e deve criar, o Diabo”.

Mephistopheles é, acima de tudo, um agitador. Assim são os Estados Unidos, que não param de agitar as sociedades adormecidas e tira-las do seu entorpecimento – um papel que começou quando o comodoro Matthew Perry “abriu” totalmente o Japão em 1854. Se queremos manter-nos fiéis a alguma concepção de progresso, este é um papel indispensável e que, actualmente, apenas os Estados Unidos podem desempenhar. A China procura relacionar-se com os seus semelhantes. Os Estados Unidos procuram relacionar-se, deliberadamente, com os que são diferentes e tentam infundir algum do seu vigor.

É verdade que a intervenção dos Estados Unidos no Médio Oriente reforça o extremismo islâmico, alimentado pelo ressentimento que a presença do país provoca nessa região do mundo. Mas o futuro não é de organizações como a Irmandade Muçulmana. O demónio religioso é muito menos atractivo do que o Tio Sam. Mais cedo ou mais tarde, os Irmãos Muçulmanos sofrerão o destino de todos os males.
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Robert Skidelsky

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