domingo, maio 20, 2012

O ócio manifesto

"Desde o clássico opúsculo de Marx que a esquerda é pródiga em manifestos. A nossa particular esquerda, então, parece viciada no exercício e é conhecida por lançar cerca de um manifesto por mês. O mais recente chama-se "Para Uma Esquerda Livre" e, como todos os anteriores, merece a nossa atenção.

Os signatários lamentam que perante uma série de calamidades (desregulação dos mercados, desprezo da dimensão estatal, etc.), a esquerda esteja "dividida entre a moleza e a inconsequência". Por sorte, os signatários não são moles nem inconsequentes: prescrevem a resistência à "ofensiva reaccionária" para, logo a seguir, lembrarem que resistir não chega: "É necessário reconstruir uma República Portuguesa digna da palavra República e construir uma União Europeia digna da palavra União." Mas um manifesto digno da palavra ma- nifesto vai mais longe: "É preciso propor aos portugueses, como aos outros europeus, um horizonte mais humano de desenvolvimento, um novo caminho para a economia e um novo pacto de justiça social." Original e pedagógico, sem dúvida. E como se conseguem essas maravilhas?

É fácil. Basta que uma "esquerda corajosa" apresente "alternativas concretas e decisivas para romper com a austeridade e sair da crise, debatidas de forma aberta e em plataformas inovadoras". Em cheio. Até aqui, havia uma esquerda mariquinhas que sugeria alternativas abstractas e vagas, para cúmulo debatidas em surdina e em plataformas caducas. Agora, isso acabou, donde o apelo "a todos aqueles e aquelas [sic] que se cansaram de esperar - que não esperem mais" e construam "uma esquerda mais livre", "um Portugal mais igual" e "uma Europa mais fra- terna".

Embora fique por definir um prazo exacto para o termo da construção, o manifesto espanta. É espantoso que pessoas tecnicamente imputáveis sejam capazes de conceber e assinar coisas assim. É espantoso que sujeitos formalmente alfabetizados escrevam tão mal. É espantoso que criaturas legalmente adultas não possuam nas cabecinhas a sombra de uma ideia. E é espantoso que indivíduos teoricamente integrados se convençam de que influenciam a realidade através da exibição da distância que os separa da realidade."

Alberto Gonçalves

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