Porque não se cala o dr. Ulrich?
"Os ingleses resumem a empatia pelos desafortunados numa frase, provavelmente apócrifa: "There but for the grace of God, go I" ("Não fora a graça de Deus, ali iria eu"). A frase pronuncia-se na presença de um infeliz e alude ao papel da intervenção divina no destino de cada homem. A intervenção divina ou, se tendermos para o ateísmo, a sorte. E o azar.
Talvez Fernando Ulrich quisesse dizer qualquer coisa similar quando sugeriu a capacidade de todos os cidadãos em suportar o sofrimento experimentado pelos que dormem ao relento e a probabilidade de, num futuro indeterminado, ele próprio o experimentar. Se era esse o objectivo, não resultou, e as declarações provoca- ram um pandemónio em parte justificado, em parte típico da vigilância verbal em que o País se especializou. E tudo porque o dr. Ulrich tem imensa sorte e pequeninos azares.
A sorte do dr. Ulrich prende-se com a sua condição materialmente privilegiada, e que faz dele rico até no nome. O azar do dr. Ulrich começa nas dificuldades reveladas no uso da língua. Por melhores que sejam as intenções, é difícil aceitar que, um dia, também ele acabará na situação de "sem-abrigo". Em lugar de agradecer a bênção que o livrou de tão triste sina, o dr. Ulrich insinuou que, a prazo, a sina poderá vir a ser a sua, hipótese pouco menos remota do que a proverbial galinha com dentes e, se insistirem muito, uma ofensa aos desgraçados que, mesmo sob um tecto, diariamente se desunham para conseguir duas refeições sofríveis.
O azar do dr. Ulrich prossegue com a área em que se distinguiu. Se, por exemplo, fosse secretário-geral da CGTP, a "boutade" acerca dos indigentes valeria a discrição suscitada pela boutade racial do sr. Arménio Carlos. Devido ao imaculado currículo, um sindicalista é livre de se divertir à custa de minorias étnicas e, presume-se, de pobres, budistas, gays e hemofílicos: um malévolo representante da banca vê-se obrigado a rígida contenção.
Se o dr. Ulrich fosse futebolista, estaria igualmente a salvo das críticas. Ainda agora, o sr. Cristiano Ronaldo confessou rezar "para que o filho nunca passe necessidades", uma afirmação que, na medida em que o atleta do Real Madrid aufere dez ou quinze vezes o salário do dr. Ulrich, é dez ou quinze vezes mais absurda e "ofensiva" do que a deste. Porém, o azar do banqueiro levou a que apenas ele inspirasse o ódio das massas.
E o azar, sempre o azar, conduziu o dr. Ulrich sozinho às remanescências da Inquisição, hoje conhecidas por Comissões Parlamentares, onde terminou forçado a esclarecer rematadas nulidades que, do alto do seu "egoísmo", é responsável pela criação de numerosos empregos, ao contrário dos que desfilam "sensibilidade social" para alcançar um.
Perante os desígnios da sorte e do azar, as nossas opções são limitadas. Mas não são inexistentes. Além do Todo-Poderoso ou do acaso, sobra uma brecha para exercermos o direito ao livre arbítrio, que no dr. Ulrich corresponderia ao direito de se calar. Mudo, o presidente do BPI complicaria a vida das patrulhas que fingem ascendência moral à sua custa e facilitaria a vida às pessoas de bom senso, as quais, por comparação com o entulho que o cerca, começam a simpatizar com um sujeito que não parece merecer a simpatia."
Alberto Gonçalves
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