quinta-feira, dezembro 27, 2007

GOSTOS PERVERSOS

"Primeira cena. Mário Soares e Clara Ferreira Alves no interior dos Jerónimos. Falam sobre religião. O dr. Soares diz que a religião "tem uma força", mas apressa-se a inventariar os seus limites. A dra. Clara, inclinada, ri-se: "Não ousa dizer que os deuses são os homens..." O dr. Soares não ousa, embora lembre que "o homem é a medida de todas as coisas" e que "o que temos descoberto nestas últimas duas décadas é extraordinário".

Segunda cena. Sinagoga de Lisboa. O dr. Soares, de solidéu, acha que "a religião judaica é extremamente importante" e recorda que foi o primeiro chefe de Estado europeu a pedir desculpa aos judeus. A dra. Clara introduz na conversa Israel e o Médio Oriente e informa que viajou duas vezes com o dr. Soares a Jerusalém.

Terceira cena. Mesquita e Catedral de Córdoba. O dr. Soares desfia inocentemente os mitos acerca da tolerância do "Al-Andalus" e exorta ao fim das guerras religiosas. Depois, numa análise mais profunda, revela que os terroristas são seres humanos e que o Ocidente "deve desarmá-los com a bondade" (sic).

Quarta cena. Mesquita de Lisboa. A dra. Clara enverga um lenço muçulmano. O dr. Soares explica que Bush, "um flagelo", "incendiou o Médio Oriente e criou um conflito entre o Islão e o mundo cristão."

Quinta cena. Sinagoga de Lisboa. O dr. Soares confessa que seguiu a filosofia grega e o direito romano. E que não foi "tocado pela fé". A dra. Clara concorda com um aceno. O dr. Soares cita Julia Kristeva (uma referência seríssima) a propósito da "necessidade de acreditar". A dra. Clara interrompe para decretar o dr. Soares "um iluminista que não foi iluminado pelo divino" e ri-se com o engenhoso trocadilho. O dr. Soares resume: "Sou filho da Revolução Francesa..." E a dra. Clara, que aqui estranhamente não ri, completa: "... e dos direitos do homem".

Isto prossegue por outros vinte minutos. Isto é O Caminho Faz-se Caminhando, a série mensal do dr. Soares e da dra. Clara que a RTP transmite. O normal seria imitar a dra. Clara e acrescentar: "... e que o contribuinte paga". Não vou por aí. O Caminho... eu pago com gosto. É verdade que sem gosto também pagaria, mas esse não é o ponto
."

Alberto Gonçalves

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Portugal tem excelentes cronistas e comentadores e algum debate jornalístico vivo e interessante. Dizemos mal da imprensa, por vezes com razão, mas sem dúvida que também existem bons valores nesse campo. No entanto, falta-nos frequentemente a agressividade e contundência que vemos, por exemplo, nos Estados Unidos ou, mesmo por cá, nos textos do Liberalismo e da Primeira República. São raras as penas afiadas e desbragadas e, em geral, dominam os nossos brandos costumes.

Vêm estas considerações a propósito da recente publicação do livro O Triunfo da Vida (Crucifixus, Lisboa, 2006), do padre Nuno Serras Pereira, que marca indiscutivelmente uma novidade no panorama da polémica nacional. O livro é insólito por várias razões. Primeiro por ser escrito por um sacerdote católico, classe que ultimamente tem andado bastante afastada da imprensa. Depois pela forma descomprometida, atrevida e contundente como trata os seus assuntos. Sempre truculento e por vezes violento, este livro parece dever mais a Guerra Junqueiro e Antero de Quental que aos comentadores actuais ou, ainda menos, aos autores sagrados.

O desassombro do autor provém de um facto simples, a denúncia indignada do que ele considera um crime enorme e abominável, e que a sociedade encara com apatia ou cumplicidade: "Um morticínio de seres humanos inocentes e indefesos, através da legalização do aborto provocado (precocemente ou cirurgicamente), da fecundação extracorpórea, da experimentação em embriões, etc., cuja dimensão não tem precedentes na História da Humanidade (p.7)." Horrorizado com esta realidade, o padre Serras Pereira luta com persistência e insistência, contra tudo e contra todos, porque qualquer respeito humano empalidece face à vastidão do martírio.

O autor, que já foi condenado em tribunal por um dos textos aqui incluídos, reúne agora num volume o labor dos últimos anos.

Ver em conjunto estes impressionantes títulos mostra bem a dimensão da campanha pessoal.

É importante dizer que a posição do padre Serras Pereira está longe de ser original. Ele esforça-se a cada passo por mostrar que defende apenas, com rigor e detalhe, aquela que é a atitude da Igreja Católica e que foi a das legislações dos países civilizados até há muito pouco tempo. E também não se limita a lançar golpes brutais contra os adversários.

O livro está cheio de referências eruditas, dados estatísticos, citações científicas e doutrinais. Na parte central a obra quase parece um tratado técnico sobre as questões da vida.

O autor sabe fundamentar bem aquilo que diz. Mas fá-lo com um desassombro, desprendimento e candura que lhe dão um lugar à parte na polémica nacional. Nada do que está escrito destoa do que se lê lá por fora acerca desses temas, mas soa estranho neste pacífico jardim litoral.

Na sua epopeia, com uma naturalidade desarmante e um atrevimento que por vezes arrepia, o livro não recua perante o ataque às instituições mais reputadas, mesmo do seu lado.

Rádio Renascença, Faculdade de Teologia, Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, até (com grande respeito) a Conferência Episcopal são increpadas, sempre com respeito, mas com inegável vigor e contundência, por vezes alguma impertinência.

Em várias páginas dá a sensação que, no meio de uma batalha onde dois exércitos se enfrentam ameaçadoramente, o padre Serras Pereira é o cavaleiro solitário que acusa de cobardia as suas tropas e não tem medo de cavalgar sozinho contra multidões.

O nosso tempo costuma gostar destas vozes solitárias e descomprometidas. Dizemos ser uma sociedade heterodoxa e insolente. Mas quando o alvo é a própria sociedade (ou seja, quando as posições são mesmo heterodoxas e insolentes) as coisas mudam de figura.

A urgência e o dramatismo são as suas razões. A sua atitude, afinal, é a mesma daqueles que, em séculos recuados, desesperavam perante a modorra da sociedade diante de terríveis injustiças como a escravatura, holocausto, pobreza e exploração dos operários.

Hoje, olhando para essas lutas antigas, condenamos os que, por conveniência ou compromisso, silenciavam ou moderavam as suas censuras. São as vozes livres e violentas que admiramos.

Nós temos a prudência e a moderação, o padre Serras tem limpidez e pureza de posição. A sua fixação arrisca-se a ferir susceptibilidades e a injuriar por inflexibilidade. Mas o nosso equilíbrio sensato é bastante incómodo quando consideramos o que está em causa.

quinta-feira, dezembro 27, 2007  
Anonymous Anónimo said...

Tudo morre neste mundo. Morrem pessoas e árvores, ideologias e línguas, morrem projectos, sonhos e civilizações. Tudo morre, mas o nosso povo sabe quem é a última a morrer: a esperança. "Toda a acção séria e recta do homem é esperança em acto." [Bento XVI, encíclica Spes Salvi (SS 35)].

Aqui reside o paradoxo que define a natureza humana. Como podem coexistir a certeza da morte e a permanência da esperança? Como é possível que do fundo da "caixa de Pandora", de onde brotam todos os males, ainda voe a luz da esperança? Esta é "a situação essencial do homem, uma situação donde provêm todas as suas contradições e as suas esperanças. De certo modo, desejamos a própria vida, a vida verdadeira, que depois não seja tocada sequer pela morte; mas, ao mesmo tempo, não conhecemos aquilo para que nos sentimos impelidos. Não podemos deixar de tender para isto e, no entanto, sabemos que tudo quanto podemos experimentar ou realizar não é aquilo por que anelamos" (SS 12).

"Enquanto há vida, há esperança", diz a sabedoria popular. Mas pode a Esperança vencer a morte? Só pela Fé em Algo maior que o mundo se passa para lá do fim. "Fé é substância da esperança" (SS 10). Na Fé cristã "a porta tenebrosa do tempo, do futuro, foi aberta de par em par. Quem tem esperança, vive diversamente; foi-lhe dada uma vida nova" (SS 2).

Mas esta Esperança que vai para lá da morte tem vindo a ser abandonada. A Idade Moderna é o tempo da ciência, da técnica, do progresso. Essa atitude trouxe avanços extraordinários, maravilhas inimagináveis. Mas também perdeu de vista a Esperança. "Agora, esta 'redenção', a restauração do 'paraíso' perdido, já não se espera da fé, mas da ligação recém-descoberta entre ciência e prática. Com isto, não é que se negue simplesmente a fé; mas esta acaba deslocada para outro nível - o das coisas somente privadas e ultraterrestres - e, simultaneamente, torna-se de algum modo irrelevante para o mundo. Esta visão programática determinou o caminho dos tempos modernos, e influencia inclusive a actual crise da fé que, concretamente, é sobretudo uma crise da esperança cristã" (SS 17).

A ânsia do progresso revelou-se no martírio da Igreja. Paroxismos de fúria e crueldade desabaram sobre os cristãos a partir precisamente das ideologias progressistas. Do marxismo ao nazismo, no México, Espanha, Alemanha, URSS, Vietname e tantos outros, confirmou-se a profecia de Daniel: "Vi um quarto animal, horroroso, aterrador, e de uma força excepcional. Tinha enormes dentes de ferro; devorava, fazia em pedaços e o resto calcava-o aos pés. Era diferente dos animais anteriores. (Dn 7, 7)

Porque razão o progresso tomou a Igreja como inimiga? A Igreja que fundara as universidades, conservara as bibliotecas, preservara a civilização? A Igreja a que pertencia a maioria dos génios, cristãos devotos, que criaram a ciência moderna (Copérnico, Kepler Galileo, Leibniz, Newton, Euler, Ampère, Gauss, Cauchy, Faraday, Mendel, Pasteur e tantos outros)? Tal raiva mostra que a questão fundamental não é progresso e bem-estar, mas algo muito mais profundo. "O progresso é a superação de todas as dependências; é avanço para a liberdade perfeita" (SS 18). O homem de hoje quer ser senhor de si mesmo, dominar a própria vida, fazer o que lhe apetece. "Ser como Deus", como prometeu a serpente do Éden na suprema tentação (cf. Gn, 3,5). Assim, "torna-se evidente a ambiguidade do progresso. Não há dúvida que este oferece novas potencialidades para o bem, mas abre também possibilidades abissais de mal - possibilidades que antes não existiam. Todos fomos testemunhas de como o progresso em mãos erradas pode tornar-se, e tornou-se realmente, um progresso terrível no mal. Se ao progresso técnico não corresponde um progresso na formação ética do homem, no crescimento do homem interior, então aquele não é um progresso, mas uma ameaça para o homem e para o mundo" (SS 22).

Tudo morre. Apenas Um ressuscitou dos mortos. "Chegar a conhecer Deus, o verdadeiro Deus: isto significa receber esperança" (SS 3). |

quinta-feira, dezembro 27, 2007  

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