quinta-feira, dezembro 27, 2007

Pequenos grandes perigos

"Quando algo pode correr mal, corre mesmo mal. O choque tecnológico poderá vir a converter-se num choque para a liberdade dos cidadãos.

A liberdade constitui, para cada um de nós, uma espécie de escudo protector que indica aquilo que os outros e o Estado não nos devem poder fazer. A existência de uma sociedade decente depende, em primeiro lugar, da existência desta esfera de inviolabilidade de cada pessoa protegida por um conjunto muito diversificado de liberdades individuais.

Apesar das liberdades estarem constitucionalizadas, a sua protecção é uma tarefa continuada e nunca acabada, a todos os níveis: legislativo, executivo, judicial, administrativo, societal. Os perigos para as nossas liberdades surgem a todos estes níveis e de onde menos se espera. Mesmo quando são pequenos na aparência, tendem depois a revelar-se grandes e perturbadores. Vejamos alguns desses perigos, infelizmente muito actuais, associados a três liberdades: a liberdade de escolha da profissão; o direito à protecção da privacidade; e as liberdades políticas.

1. A liberdade de escolha da profissão é crucial para o tipo de vida que cada um de nós pode ter. Mas existem inúmeras pressões corporativas na sociedade portuguesa que condicionam o acesso às profissões. O caso mais conhecido é o dos médicos. Durante anos, a Ordem dos Médicos e as Faculdades de Medicina fizeram um ‘lobby’ bem sucedido contra a abertura de vagas nos cursos de Medicina. O resultado foi excelente para o crescimento dos honorários médicos e desastroso para o país. Recentemente, o ministro da saúde chamou a atenção para a necessidade de alargar as vagas nos cursos de medicina. O bastonário da Ordem dos Médicos reagiu de imediato dizendo que o ministro quer “mandar as pessoas para o desemprego”. Como se um curso universitário tivesse de garantir o emprego! Este é um caso mais do que escandaloso para a liberdade dos cidadãos. Em nome da defesa pura e simples de interesses corporativos impede-se uma grande quantidade de jovens de escolher a via de acesso à profissão para a qual se sentem vocacionados.

2. O direito à protecção da privacidade – que é também uma liberdade fundamental – está obviamente em causa com o novo Cartão do Cidadão. Para além da informação constante dos actuais Bilhetes de Identidade, o Cartão do Cidadão concentra as informações dos cartões do contribuinte, Segurança Social e Serviço Nacional de Saúde. Note-se que uma tal concentração de informação não existe em outras experiências de cartões de identificação electrónicos. Ao pronunciar-se sobre a lei que criou o Cartão do Cidadão, a Comissão Nacional de Protecção de Dados lançou fundadas dúvidas sobre a possibilidade da sua falsificação e contrafacção. Mais graves ainda são as dúvidas que também levantou acerca da sua fiabilidade e inviolabilidade. Conhecidas as debilidades deste tipo de sistemas e a cultura de desrespeito pela privacidade dos cidadãos por parte da nossa administração pública estão reunidas as condições para que algo corra mal. E, como todos sabemos, quando algo pode correr mal, corre mesmo mal. Neste aspecto, o choque tecnológico poderá vir a converter-se num choque para a liberdade dos cidadãos.

3. O valor das nossas liberdades políticas – como a de votar – é constantemente ameaçado pelos casos de corrupção associados às instituições públicas e aos partidos políticos. Os casos que têm surgido em torno do poder central, das autarquias e das polícias são preocupantes. Mas também o são os casos directamente associados aos partidos políticos. Recorde-se o “subsídio” entregue ao PSD de Durão Barroso pela Somague, entretanto eclipsado pelo silêncio dos culpados e pela cumplicidade de outros. Ainda que este caso não seja susceptível de procedimento criminal, ele é a ponta de um ‘iceberg’ que faz com que o controlo democrático propiciado pelas liberdades políticas seja frequentemente ultrapassado por empresários e políticos sem escrúpulos. Neste contexto as liberdades políticas continuam a existir formalmente, mas o seu valor real diminui.

Assim, os perigos para a liberdade tanto podem vir da sociedade como do Estado, das organizações profissionais ou das empresas, do Governo ou dos partidos políticos. No ano de 2008 teremos de estar especialmente atentos aos diversos “pequenos grandes perigos” que sobre ela impendem
."

João Cardoso Rosas

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Numa democracia como nossa e muitas outras ,sob a capa da transparencia ,é exercido o desmando das forças politicas,empreasariais e corporativas.Sou pela disponibilidade de informações ,mesmo que isso signifique a vilação de dados de uma minoria.É o risco de viver em liberdade,tal como circular nas ruas.Os ingleses é que não toleram essa possibilidade porque estavam habituados ter Estado.Agora vão mudando de opinião...

quinta-feira, dezembro 27, 2007  
Anonymous Anónimo said...

Um dia olhei à volta e vi o mundo como nunca vira. A realidade é uma floresta. Eu parecia estar em cima de uma árvore, no meio de muitos ramos grossos e frondosos, folhas, rebentos e frutos. Toda a minha actividade desenrola-se por entre esta folhagem. O meu trabalho e azáfama, os meus desejos e frustrações, todas as minhas viagens, correrias, tarefas e divertimentos têm lugar nas copas de um denso bosque. Vi as ruas e casas, salas e corredores formados do material vegetal da selva. Reencontrei todos os meus colegas e conhecidos, amigos e familiares, cada um na sua labuta, todos fazendo tudo equilibrados nos troncos, ramos, folhas e caules daquele espesso arvoredo.

Tornou-se então clara a natureza da minha existência, que antes sempre me tinha perturbado. A permanente insegurança da realidade humana fica compreensível se soubermos que vivemos no topo ondulante de um bosque batido pelo vento. Os obstáculos que sentimos no quotidiano, a confusão e incerteza do nosso destino, ficam subitamente claros. É difícil ver através das hastes e folhas. É penoso mover-se por entre caules, lianas e trepadeiras. Vivendo no topo de uma floresta, é evidente a razão por que as coisas não andam como queremos.

Então, olhando para baixo, tive um sobressalto. Os ramos onde vivo estão suspensos muitos metros acima de um nevoeiro cerrado que parece cobrir um pântano. O cheiro nauseabundo, o chapinhar e os roncos medonhos que de lá sobem são apavorantes. Entrevêem-se cristas escamosas, focinhos monstruosos. A nossa vida precária baloiça-se por cima de um atoleiro repugnante e sangrento. A vida humana titubeia sobre o abismo. Ninguém parece dar-se conta da situação. Alguns filósofos meditam sobre isto, ouvem-se muitas histórias de incautos engolidos pelo lamaçal. Mas sente-se um esforço colectivo para ignorar a realidade e esquecer a ameaça. Todos se agarram com força aos ramos e contentam-se com a vidinha, intensa ou pacata, no meio das folhas. De olhos finalmente abertos, senti que não conseguia mais permanecer naquele lugar. Como podia deixar escoar a minha vida num matagal frágil por cima da catástrofe? Como achar isso normal, corrente, tolerável?

Foi então que reparei numa grande luz que vinha do Oriente. Por entre a folhagem entrevi um clarão que não parecia apagar-se. Corri pelo meio dos troncos e cheguei à margem do pântano onde, de uma enorme muralha dourada e brilhante, partia a luz. Não consegui ver o topo daquela parede imponente, feita de grandes blocos de pedra. De ambos os lados não se vislumbravam os extremos . Era imensa.

Vi então que entre a muralha e o arvoredo do pântano havia uma estreita faixa de areia onde se encontrava uma pequena multidão. Desci da árvore e perguntei o que era aquilo. Disseram-me que era o muro da cidade das delícias, onde se vive feliz para sempre. Julguei que a muralha era para manter longe os invasores, mas um velho explicou: "Não foram os habitantes da cidade que fizeram o muro. Fomos nós, forçados pelo dragão que vive no meio do pântano." Este paradoxo era o tema de conversa de toda aquela gente, que queria passar sobre a muralha luminosa. Alguns diziam ter recebido mensagens do Senhor da cidade e saber como fazer uma escada. Asseguravam que a subida viria do esforço e sacrifício. Outros falavam de meditação ou repetiam leis e cultos para saltar o obstáculo.

Eu perguntei: "Já se lembraram de procurar uma porta?" Olharam para mim com desprezo e um respondeu: "Se és dos que acreditam que há uma porta, vai para ali ter com os teus amigos." Então reparei que, um pouco mais adiante, havia na praia um grande grupo que parecia olhar todo para um mesmo local. Aproximei-me e notei uma outra multidão, semelhante à primeira. Mas esta estava a cantar. Naquela zona a base da muralha escurecia e parecia abrir uma espécie de caverna. Era para ali que toda aquela gente olhava. De dentro vinha uma luz ainda mais forte que a que saía das pedras do muro. Pareceu-me ouvir, vindo da gruta, o som de uma criança a chorar. |

quinta-feira, dezembro 27, 2007  
Anonymous Anónimo said...

As recentes eleições para bastonário de várias Ordens profissionais manifestaram uma enorme perversão funcional. Mas a candura com que as coisas foram feitas e ditas mostra como até os principais responsáveis não se dão conta da sua degradação.

Um direito fundamental numa sociedade moderna é a liberdade de associação, podendo cada um criar os agrupamentos que quiser para defender o que achar conveniente. Mas as Ordens profissionais não são agremiações dessas. Trata--se de instituições de Direito Público, não de Direito Privado. Só por isso é que elas têm poderes estatais a que nenhuma associação de cidadãos pode aspirar, como o de conceder ou retirar o direito de alguém exercer um ofício particular. O motivo é fácil de entender.

Em certas actividades, o profissional exerce um poder muito forte sobre os clientes. O caso típico é o médico, que tem nas mãos a vida e a saúde do doente. Nesses casos o público precisa de se proteger dos eventuais abusos que esses especialistas possam cometer na sua acção. O problema é que só um colega do mesmo ofício consegue julgar tais abusos. Apenas um médico sabe dizer se, num acto particular, existiu maldade ou boa prática clínica.

Para resolver a questão muitos países entregaram a regulação desse tipo de actividades mais sensíveis às Ordens, constituídas pelo universo dos respectivos profissionais. Por isso elas só devem existir nos casos em que se joga um interesse público fundamental. As verdadeiras Ordens tratam apenas de valores como a saúde (Ordens dos médicos, enfermeiros, farmacêuticos, dentistas e veterinários), justiça (advogados), infra-estruturas (engenheiros e arquitectos), contas empresariais (Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas e Ordem dos Revisores Oficiais de Contas), etc.

O aspecto mais importante desse tipo de instituição é que ele só pode ter como objectivo não defender os interesses dos profissionais, mas defender o público dos abusos desses profissionais. O facto de ser regido pelo Direito Público é isso mesmo que quer dizer. Trata-se, no fundo, de uma espécie de secretaria de Estado ou direcção-geral que, nesse campo concreto, se ocupa, como todas, do bem comum. Por isso tem o poder de certificar os profissionais e de julgar a sua prática pelas comissões deontológicas. Tudo isto são funções que naturalmente caberiam ao Estado mas, como ele se sente incompetente nessa tarefa particular, entrega-as a quem sabe, os membros dessa actividade.

Aqui surge uma das circunstâncias mais difíceis da natureza humana, a de "juiz em causa própria". Como a profissão se auto-regula, a tentação de transformar a Ordem numa corporação de interesses é enorme. Em alguns casos tenta-se resolver a questão criando duas instituições diferentes para a mesma actividade. Se as Ordens dos Médicos e Farmacêuticos são de Direito Público, os Sindicatos dos Médicos e a Associação Nacional de Farmácias são de Direito Privado e podem, com toda a legitimidade, defender os interesses da respectiva classe. Outro argumento muito utilizado é dizer que ao proteger os interesses dos profissionais se protege o público, porque eles só existem para servir as populações.

As recentes eleições para bastonário, como de costume, nem se deram ao trabalho de tais expedientes e eufemismos. As propostas e retóricas eleitorais foram concebidas, descaradamente, como se estivesse em causa apenas a defesa dos interesses dos que votam. Para todos os envolvidos - candidatos, eleitores, comunicação social e até o público- tratava- -se de um problema particular daquele sector, decidido pelos membros desse sector.

Aliás é visão comum que a classificação de "Ordem" é mero título honorífico de respeito por certas actividades. As subtilezas legais são esquecidas, e ninguém parece interessado em esclarecê-las. Todo o processo das Ordens vem tornando-se num enorme embuste, permitindo a certos grupos apropriarem-se de poderes públicos para benefício privado. Mais um episódio do manso regresso da Terceira República ao corporativismo salazarista.

quinta-feira, dezembro 27, 2007  
Anonymous Anónimo said...

O fenómeno mais influente na nossa geração tem pouco a ver com telemóveis, Internet ou globalização. É simplesmente o facto de todos nós irmos viver muito mais tempo que os nossos pais. Esse facto é muito mais revolucionário que a tecnologia, a mudança de costumes ou a integração económica. Mas poucos parecem dar-se conta disto. Perde-se tanto tempo a falar do aborto e da China, da bioética e da pirataria informática, mas passa-se ao lado da verdadeira revolução que nos assola.

Isso não espanta. O mundo evolui mais depressa que as nossas teorias acerca dele. O mais patético é contemplar uma sociedade agitada mas incapaz de entender o que realmente se passa com ela.

Em Portugal, a esperança de vida ao nascer era de 38 anos em 1920, 68 em 1970 e neste momento é quase de 80 anos e continua a subir. Mesmo nas zonas mais pobres esse efeito domina: a África subsariana tem uma esperança de vida ao nascer que, apesar de miserável, subiu de 40 para 46 anos nos últimos 40 anos, um aumento maior que em todos os séculos anteriores. Estimativas científicas, ainda muito rudimentares, dizem que estas melhorias na saúde e na longevidade representam para a humanidade um valor muito superior a quaisquer desenvolvimentos no produto nacional (Kevin M. Murphy & Robert H. Topel, 2005. The Value of Health and Longevity, NBER Working Papers 11405). Este é mesmo o fenómeno decisivo do nosso tempo: vamos todos morrer muito mais tarde do que pensamos.

O mais extraordinário é que esta verdadeira revolução na humanidade só entra no nosso discurso corrente sob temas como "envelhecimento da população" ou "crise da Segurança Social". Ora isso é precisamente o oposto do que está acontecer. O que existe é um rejuvenescimento das pessoas idosas, o que devia facilitar, não prejudicar, a Segurança Social.

Por outro lado, é incrível que a reacção política comum seja reduzir a idade de reforma. As pessoas estão válidas cada vez até mais tarde, mas deixam de produzir cada vez mais cedo. Esta monstruosa tolice passa com a maior naturalidade e são os próprios que se querem condenar a uma vida de ociosidade quando ainda têm pela frente mais de 20 anos de capacidade. O mundo evolui mais depressa que a nossa compreensão dele. Ninguém parece tirar as reais consequências de só nos sentirmos velhos em idades que os nossos antepassados nunca atingiam.

Mas o mais surpreendente é que até as empresas, normalmente tão rápidas a captar oportunidades, ainda não entendem esse magno potencial.

Os empregadores são os primeiros a considerar que os trabalhadores acima dos 50 anos estão obsoletos e devem ser substituídos por jovens. Jovens que, por acaso, cada vez há menos (este é o outro lado do tal envelhecimento). Assim, o aparelho produtivo moderno, aplicando critérios da era industrial de Oitocentos, ignora o maior potencial económico da actualidade, a capacidade de hoje se sentir aos 70 como antes aos 40.

No entanto, a economia e a sociedade acabam sempre por integrar as suas forças, mesmo para lá da tolice dos seus membros. Não é possível omitir uma explosão de energia com esta dimensão. O fenómeno do voluntariado é, entre muitos outros, uma resposta que permite a integração dessa força. Extraordinariamente influente nos países mais avançados e crescendo visivelmente em Portugal, ele é impulsionado sobretudo por reformados e universitários, aquela "população activa" que as empresas não sabem aproveitar.

O mais irónico é que essa actividade voluntária, que até agora se tem limitado à acção social e cultural, começa a enveredar por iniciativas mais mercantis. Não tarda muito que vejamos associações recreativas, "centros de dia", ONG ou até verdadeiras firmas criadas por reformados utilizarem o seu potencial produtivo. Nessa altura, teremos idosos a concorrer no mercado com as mesmas empresas que já não os consideram úteis. Com o pequeno detalhe que, graças à sua situação, eles podem praticar preços absolutamente imbatíveis. Por causa das suas reformas, que são pagas com os impostos dos trabalhadores, será possível que vendam a preços que os trabalhadores nunca conseguirão igualar.

Nessa altura vai-se falar muito de "concorrência desleal", de abusos da terceira idade, de perversão do Estado-Providência. Mas os mais inteligentes compreenderão o terrível erro de subestimar a dinâmica mais determinante da sua época. O ajustamento pode ser doloroso e conflitual, mas acabará por se dar.

quinta-feira, dezembro 27, 2007  

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