sexta-feira, julho 02, 2010

O dia da morte de José Saramago

"Portugal ficou mais pobre? Se a pobreza for de espírito e a julgar pelas carpideiras, sem dúvida. A morte de José Saramago iniciou uma competição de louvores e levou uma extraordinária quantidade de sujeitos, notáveis e anónimos, a elogiar um homem que, evidentemente a título elogioso, todos acham "polémico".

É verdade que Saramago tentou a polémica. E se agora muitos aconselham a separar o autor da respectiva obra, é igualmente verdade que o conselho não possui efeitos retroactivos. Após O Evangelho... e sobretudo após o Nobel, que insuflou Saramago com uma importância proporcional à importância que um país periférico dá a essas coisas, os seus romances confundem-se frequentemente com sebentas de apoio às controvérsias públicas que o autor buscava e, na maioria dos casos, obtinha. Menos lidos do que comentados, os livros de Saramago pareciam-se com uma mera versão escrita do chinfrim que o próprio anunciava ainda antes de cada publicação e se esforçava por alimentar depois.

E tudo isso para quê? Vasculha--se a imprensa e, entre a excitação dos epitáfios, não se encontra uma voz dissonante. Saramago orgulhava-se de fomentar inimigos, mas, fora dos comentários sem rosto na Internet, aparentemente não há um com a decência de aparecer e proclamar que desprezava a obra ou que detestava o autor.

Para quem se sonhou incómodo, não haverá maior traição do que partir neste sufocante consenso. Armados de panegíricos, os adversários evitam o sectarismo de que Saramago sempre padeceu, os admiradores lembram o criador perseguido (?) e esquecem o comissário político, os alucinados exaltam a "coragem" do fiel servidor de uma ditadura (felizmente breve), os sensíveis reclamam respeito post mortem por um indivíduo que venerou uma ideologia especializada no assassínio.

Eu, que nunca gostei do escritor nem do cidadão e não mudei de ideias por causa de um destino a que ninguém escapa, faço-lhe a justiça de imaginar que, caso também aí Saramago se tenha enganado e a alma seja realmente imortal, a alma dele hoje lastime tamanha unanimidade. Pela modestíssima parte que me toca, não a terá. E não precisa de agradecer
."

Alberto Gonçalves

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