quinta-feira, setembro 23, 2010

Uma Estrela sobre Belém

"Causou certa polémica a carta que, já há uns dias, a dra. Edite Estrela endereçou aos militantes do PS a pretexto das "presidenciais". Segundo as notícias, o texto era demolidor (ou insultuoso, consoante a perspectiva) para o prof. Cavaco, o qual foi ao ponto de, não se pronunciando, se pronunciar sobre o assunto. Roído de curiosidade, fui ler a carta na íntegra e constatei que é demolidora e insultuosa, sim, mas para a língua portuguesa e para o bom senso, caso a julguemos pela forma ou a julguemos pelo conteúdo.

Antes de mais, a forma. A dra. Estrela, que se celebrizou na televisão enquanto uma espécie de corrector ortográfico, trata logo de se dirigir aos compinchas com um "Car@ Camarada, Car@ Amig@" (tentem ler em voz alta), variação modernaça e fresca do "portuguesas & portugueses" popularizado pelo eng. Guterres. Infelizmente, é também sintoma de um gosto aterrador e de uma alfabetização suspeita. Depois, a missiva prossegue repleta de tropeções desagradáveis, como o uso despropositado das maiúsculas ("Cultura", "Cidadãos Eleitores", etc.) e o recurso aos clichés típicos do meio em que a dra. Estrela saltita ("o nosso futuro colectivo", "apoio inequívoco", "um histórico do PS e uma referência do Portugal democrático", "espaço de cidadania", etc.).

Pior, porém, é o conteúdo. Em suma, a dra. Estrela pretende dizer, e para nosso infinito embaraço diz, três simples coisinhas. A primeira é que, ao contrário do que pelos vistos sucede com o prof. Cavaco, o presidente da República não deve discordar do Governo ou antipatizar com o respectivo chefe. A segunda é que o PSD teceu com o prof. Cavaco uma tramóia para chegar ao poder e impor políticas "conservadoras e neo-liberais". A terceira é que apenas Manuel Alegre assegura em Belém "a vitória de uma visão social aberta e universalista sobre uma visão social restrita e preconceituosa", "a vitória dos valores do humanismo sobre o materialismo", "a vitória de uma sociedade plural e paritária sobre uma sociedade que não respeita a diferença nem promove a igualdade", "a vitória da Cultura sobre a tecnocracia", etc.

Podíamos dissecar cada uma das teses ou, no mínimo, perguntar à dra. Estrela se ela julga inadmissível as intromissões dos presidentes Soares e Sampaio nos governos de então ou se o pacto de não ingerência só se aplica a presidentes do PSD e a governos do partido que emprega a senhora. Ou se a senhora realmente acha que "conservador" e "neo-liberal" são sinónimos e se, de qualquer forma, acredita que o PSD é um partido de direita. Ou se a senhora está de facto convencida de que a repetição de disparates solenes acerca de Manuel Alegre o eleva acima do vácuo que ele, indiscutivelmente, é.

Se calhar, não vale a pena. No fundo, a grande questão aqui é apurar se a dra. Estrela é tão ingénua (sejamos brandos) quanto a carta sugere ou se a ingenuidade (idem) é simulada a benefício dos militantes do PS. Por outras palavras, o que importa é distinguir se estamos perante um drama pessoal ou uma pandemia de proporções alarmantes, que atinge os socialistas e todos os portugueses que misteriosamente levam os desabafos da dra. Estrela a sério
."

Alberto Gonçalves

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