terça-feira, março 15, 2011

O Estado somos nós

"Quando, no sábado, milhares cantaram o hino nacional na Avenida da Liberdade em Lisboa, todos perceberam o que estava em causa.

O momento chegou: Portugal não dobra mais, agora parte. Hoje é segunda-feira, o País está cativo da fiscalização europeia, paralisado por camionistas, na iminência de eleições. Tudo se precipita: crise financeira, política e social.

As manifestações de sábado foram extraordinárias, de vida, protesto, paz, comunhão. O país sentado subestimou até ao fim o poder daqueles que se levantavam - e no fundo torcia pelo seu humilhante fracasso. Porque alongaria a vida aos instalados, porque a tranquilidade é uma aparência de paz.

Mas a manifestação foi histórica. Heterogénea. Pacífica. Tolerante. Será recordada por quem lá esteve como a da Fonte Luminosa ainda hoje o é. Porque foi uma manifestação de cidadania. E como a solução terá de ser política, os políticos não podem mais fingir que este é um país de mancebos amansados. Sim, Sócrates está no fim do seu tempo mas quem se manifestava não pedia uma mudança de Governo, nem sequer uma mudança de políticas: mas uma mudança de era.

A crise social saiu da abstracção das estatísticas, agora vê-se a sua pele e osso. Nos manifestantes. Nos grevistas dos transportes. E a partir de hoje dos camionistas, que ameaçam repetir o Verão de 2008, quando Portugal esteve à beira do racionamento de combustíveis e alimentos.

Isto acontece quando o Governo anuncia mais um pacote brutal de austeridade, com o conforto europeu, em declarações entusiasmadas de Merkel, Trichet, Barroso para tentar aliviar a pressão dos mercados.

Traduzamos: Portugal já está a ser ajudado e já se entregou ao que essa ajuda exige. Há um ano que é o BCE que empresta dinheiro aos nossos bancos e, indirectamente, ao Estado; este pacote de austeridade foi negociado com Bruxelas e Frankfurt (para não dizer Berlim), que exigiram as medidas em troca do apoio político dado na sexta-feira. E tudo isto para tentar ganhar algumas semanas até que a alteração do Tratado de Lisboa, na Cimeira de 24 e 25 de Março, permita em Abril que o Fundo de Estabilização empreste dinheiro a Portugal no novo mecanismo, que deverá colocar um "tecto" no preço dos mercados, na casa dos 5%, acima do qual é o Fundo que compra a dívida.

Portugal já está na linha de montagem da ajuda; já fizemos a nossa parte, a Europa já nos deu o apoio político, falta a alteração do Tratado. Até lá, os mercados têm de comprar a ideia de que Portugal baixou o risco. Hoje, o BCE estará a comprar dívida portuguesa no mercado secundário para descer os juros. E o BCE e a Comissão passam a fiscalizar as nossas finanças públicas, as nossas reformas estruturais, a nossa recapitalização dos bancos. Quem governa?

Esta é a forma mais suave de intervenção que Sócrates terá sonhado. Mesmo não sendo certo que vingue, pois a crise política que se desenha pode anular o efeito das medidas de austeridade. E vamos para eleições.

José Sócrates preparou as medidas de austeridade à traição a Cavaco e à oposição, fiel apenas às instituições internacionais. E comprometendo-se com um calendário de medidas que o próprio país desconhece. O que prova que o tempo de Sócrates chegou ao fim: ele é apenas o boneco do ventríloquo estrangeiro que nos ajuda, nos financia e nos governa.

Os próximos dois anos da economia portuguesa estão traçados e serão negros. Para que depois disso valha a pena, é preciso ouvir as manifestações - e pedir aos manifestantes que se incluam no sistema e o mudem por dentro, não que se abstenham dele. Os manifestantes não foram apenas muitos: foram, no Porto, mais dos que votaram em Rui Rio e, em Lisboa, o dobro daqueles que votaram em António Costa e quase tantos quantos os que votaram nas últimas eleições. Sim, o país está a partir. Talvez mesmo a partir-se. Mas antes partir o País que partir dele
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Pedro Santos Guerreiro

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