domingo, maio 15, 2011

Quem se quer ver sempre se encontra

"O plano de assistência financeira para Portugal ("Plano") contém diversas iniciativas para o relançamento da economia e para a redução do endividamento, mas surpreende na relativa timidez com que aborda a capitalização das empresas, cuja debilidade dificulta a conciliação destes objectivos.

O "Plano" contém as três vertentes de actuação típicas: o reequilíbrio sustentado das finanças públicas, a estabilidade do sistema financeiro e a melhoria dos factores de crescimento potencial. No caso de Portugal, esta última vertente recebe a primazia. Conforme referido pelos responsáveis do FMI, "(…) a primeira prioridade é actuar sobre os problemas de longo prazo e estruturais que têm contribuído para que Portugal tenha registado o menor crescimento económico na área do euro ao longo da última década e a maior taxa de desemprego dos últimos dez anos (…)".

O processo de ajustamento e de crescimento tem de proporcionar uma redução do défice externo, o que implica uma maior competitividade - pelo preço, qualidade ou novidade - dos bens e serviços portugueses. Não é possível replicar a política de há 30 anos, de um Escudo mais fraco, pelo que se recorre a medidas que tentam alcançar efeitos semelhantes. Donde o termo "desvalorização fiscal". De um modo sintético, desincentiva-se o consumo por contrapartida do incentivo à actividade empresarial. Materializa-se sob a forma de um aumento muito significativo da carga fiscal sobre os particulares, no IRS, no IVA, nos impostos especiais sobre o consumo ou no IMI - equivalente a cerca de 1% do rendimento disponível das famílias - e, do lado das empresas, através da redução de custos da actividade, nas contribuições para a Segurança Social, nos incentivos à mobilidade laboral, nas reformas tendentes a resoluções mais céleres do sistema judicial, cujos ganhos são muito difíceis de quantificar.

Ainda neste enquadramento, algumas das medidas mais emblemáticas associam-se ao mercado de arrendamento. Pretende-se, naturalmente, uma maior arrecadação fiscal, mas também contribuir para a mobilidade laboral e para a redução do endividamento das famílias. Esta última intenção merece um pequeno comentário no âmbito dos objectivos da "desvalorização fiscal".

O endividamento das famílias aumentou muito desde o início da adesão ao euro. As taxas de juro, o quadro regulamentar, a ineficiência do mercado de arrendamento constituíram um incentivo forte para o aumento do peso da casa própria na realidade nacional. Cerca de 75% das famílias portuguesas vivem em casa própria (era 65% no início dos anos 90). Este é um valor elevado para os padrões europeus (62% para a média europeia, dados de 2007). A dívida bruta das famílias, naturalmente, que aumentou, rondando actualmente os 105% do PIB, contra valores na ordem de 65% para a área do euro. Claro que, em boa parte, este aumento do passivo das famílias encontra alguma compensação do lado do activo, onde se inscreve a casa propriamente dita. O património financeiro líquido das famílias não difere sobremaneira das médias europeias (valor positivo do património financeiro líquido na ordem de 130% do PIB, para Portugal e para a média europeia). Resumido, o endividamento das famílias portuguesas sobressai pelas preferências e necessidades sociais diferentes.

Neste sentido, pese embora a preocupação com o endividamento das famílias seja sempre pertinente, assume alguma desproporção no Plano quando comparada com uma situação mais crítica para o crescimento económico que é o endividamento das empresas portuguesas, onde o desequilíbrio é mais acentuado. E, sobre este, as medidas são mais esparsas. O património financeiro líquido das empresas portuguesas (incluindo empréstimos e capital) é negativo, o que é uma situação normal. Mas, ascende a cerca de 170% do PIB, quando os valores médios europeus rondam os 100%. Tomando em consideração a realidade sectorial, o panorama não melhora: o valor da dívida líquida face aos resultados operativos é em média 1,5 vezes superior em Portugal ao valor que se regista noutros países europeus. Em alguns sectores, como na construção, imobiliário, alojamento, restauração e lazer, este rácio é quase superior em dobro ao valor médio europeu.

Quanto ao financiamento que poderá ser disponibilizado a Portugal nos próximos três anos, os 78 mil milhões de euros representam cerca de 1/5 do endividamento bruto total da economia portuguesa (aprox. 380 mil milhões de euros a valores do final de 2010, contabilizando apenas rubricas de dívida). Mas o plano não pretende financiar na totalidade a nossa dívida, tem por objectivo final o retorno progressivo do país a um financiamento normal em mercado. Nem financia directamente o sector privado. Os fundos são disponibilizados ao Estado, por intermédio do Estado (fundo de recapitalização do sistema financeiro de 12 mil milhões de euros a deduzir aos fundos totais) ou com recurso às garantias do Estado (aumento das garantias do Estado para 35 mil milhões de euros). O Plano institui um mecanismo extraordinário de financiamento do sector público, mas o sector privado tem de continuar a encontrar os recursos para se refinanciar ou então tem de reduzir a dívida para com o exterior (que na sua maioria foi intermediada pelo sistema bancário, donde a preocupação com a respectiva estabilidade).

Relançar a economia, designadamente pelo reforço do sector dos bens transaccionáveis, em simultâneo com um processo de redução do nível de endividamento, onde as empresas se destacam, com fortes limitações institucionais e regulamentares relativamente à exposição a risco no sector bancário e consequentemente sobre a respectiva capacidade de conceder crédito à economia, constitui um desafio exigente. Surpreende, por isso, a relativa timidez como o tema do endividamento das empresas ficou plasmado no Plano, nomeadamente quando comparado com o conjunto de iniciativas relacionadas com o endividamento das famílias. benefícios fiscais na retenção de resultados, incentivos para que os sócios/accionistas reforcem a estrutura de capital das suas empresas, repatriamento de poupanças, prémios de produtividade, regimes favoráveis a fundos de recapitalização das empresas, promoção do redimensionamento das empresas de modo a criar condições, apetência e capacidade para obter financiamento no mercado de capitais, seriam, decerto, medidas que não destoariam do restante rol e que certamente se enquadrariam nos desígnios do Plano e de Portugal.
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Gonçalo Pascoal

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