Um dia em Lisboa com Boris Vian
"Ontem dei comigo a pensar longamente - não sei porquê, confesso - sobre os três ladrões que foram apanhados pela polícia a roubar óculos em Cascais. Pois foi, não consegui, por mais que tentasse, deixar de pensar nisso. A pergunta que mais me vinha ao espírito era sempre a mesma: mas como é que aquelas três almas tiveram essa ideia? É que dá para imaginar o sarilho que deve ser para se desembaraçarem deles, tratando-se de um produto usado em pouca quantidade (conhecem alguém com trinta pares de óculos?) e relativamente difícil de colocar, pois não é como as Lacoste, que dá para vender na feira de Carcavelos - isto de vender óculos dá nas vistas!
Na minha cabeça, só uma razão o explica: a necessidade. Os nossos ladrões eram, com certeza, gente com dificuldades visuais, o que explica, aliás, como foram apanhados: não viram a polícia chegar. Foram presos por uma patrulha de rotina, veja-se bem, o que, aliás, não admira. Neste País, uma pessoa só é presa se for de improviso. Quando é preciso fazer uma investigação, em regra, já sabemos que vai tudo acabar sem se prender ninguém.
Eu, nestas minhas cogitações, até adivinho por que estes três indivíduos fizeram o assalto. É um sinal de revolta de três desgraçados que, como demonstrei acima, têm seguramente problemas visuais e estão danados com a falta de apoio do Estado e o sinal de desprezo que tal constitui quando há cada vez mais apoios para situações que não têm o mesmo nível de gravidade. Veja-se, por exemplo, que ainda esta semana a ministra da Saúde decidiu alargar os apoios aos casais inférteis, de 37% para 69% de comparticipação nos medicamentos e permitindo o tratamento no privado, em vez de apenas no público. Não que seja de criticar tais medidas - é óbvio que os problemas de infertilidade não são para serem tratados em público - mas a arbitrariedade fica a nu quando se decide comparticipar a infertilidade a 69%, que assume o aspecto de número cabalístico: por que não 68% ou 70%, tem mesmo que ser 69%? E choca mais quando sabemos que até se foi ao ponto de propor a contratação de um especialista espanhol por, veja-se bem, falta de competências nesta área em Portugal. Tudo isto, saliente-se, quando a falta de uns bons óculos pode muito bem ser motivo de infertilidade.
Portanto, o que restava aos nossos três desgraçados? Seguramente que não seria irem queixar-se para a Assembleia da República, onde, a fazer fé num velho ditado, seriam reis, se é que alguém quer ser rei naquela casa. Como conclui JVM no seu artigo no Público, agora que foi banido do vocabulário parlamentar o termo "autista", seguir-se-ão "cego", "surdo", "mudo" e "coxo". Assim, qualquer português com um problema sério de saúde e que não conheça um espanhol competente ter-se-á que ir queixar para outro lado ou resolver os problemas por si, não pode contar com o Estado, parlamentares incluídos.
Aliás, quem conhece a nossa Assembleia sabe que para ela os problemas são resolvidos fazendo uma lei ou uma recomendação ao Governo, que é como quem diz, seguindo a estratégia da senhora da limpeza: varrendo tudo para debaixo do tapete. Até estou admirado, dado o pendor (ou furor) tecnológico dessa "casa" e o equipamento que lá foi agora instalado, não terem seguido outro rumo, mais digno do que proibir o uso de palavras que constam em qualquer dicionário. Como se pode conceber que na casa da liberdade haja agora restrições à liberdade de expressão? Não seria mais fácil deixar os nossos deputados exprimirem-se livremente ao microfone e aplicar um algoritmo informático de correcção das intervenções? Por exemplo, se um deputado diz a outro "Vá o meu caro colega à badamerda", ouvir-se-ia nas galerias "está na altura de Vossa Excelência se ausentar uns momentos do Hemiciclo"; ou se numa bancada um deputado gritar a outro: "Seu chulo!", soaria no sistema de som um: "Vossa Excelência tem interesses num negócio de infidelização do cliente."
Que têm em comum estas três histórias, para além de terem acontecido ao mesmo tempo? Um bando de ladrões que, acontecimento extraordinário, é preso de tal forma é incompetente? Um Ministério da Saúde que confia nos médicos nacionais ao ponto de procurar um estrangeiro? Um parlamento que é tão autista que, quando o País atravessa a pior crise económica em 35 anos, acredita que resolve algum problema banindo a palavra autista do seu vocabulário? Dir-se-ia que estamos em pleno Outono em Pequim, do Boris Vian, que, como é sabido, não aconteceu no Outono nem em Pequim, A diferença é que em Portugal a realidade ultrapassa a ficção.
Frederico Bastião
Frederico Bastião é Professor de Teoria Económica das Crises na Escola de Altos Estudos das Penhas Douradas. Quando lhe perguntaram por que é que alguém roubaria 20.000 euros em pares de óculos, Frederico respondeu: "Falta de visão."
Na minha cabeça, só uma razão o explica: a necessidade. Os nossos ladrões eram, com certeza, gente com dificuldades visuais, o que explica, aliás, como foram apanhados: não viram a polícia chegar. Foram presos por uma patrulha de rotina, veja-se bem, o que, aliás, não admira. Neste País, uma pessoa só é presa se for de improviso. Quando é preciso fazer uma investigação, em regra, já sabemos que vai tudo acabar sem se prender ninguém.
Eu, nestas minhas cogitações, até adivinho por que estes três indivíduos fizeram o assalto. É um sinal de revolta de três desgraçados que, como demonstrei acima, têm seguramente problemas visuais e estão danados com a falta de apoio do Estado e o sinal de desprezo que tal constitui quando há cada vez mais apoios para situações que não têm o mesmo nível de gravidade. Veja-se, por exemplo, que ainda esta semana a ministra da Saúde decidiu alargar os apoios aos casais inférteis, de 37% para 69% de comparticipação nos medicamentos e permitindo o tratamento no privado, em vez de apenas no público. Não que seja de criticar tais medidas - é óbvio que os problemas de infertilidade não são para serem tratados em público - mas a arbitrariedade fica a nu quando se decide comparticipar a infertilidade a 69%, que assume o aspecto de número cabalístico: por que não 68% ou 70%, tem mesmo que ser 69%? E choca mais quando sabemos que até se foi ao ponto de propor a contratação de um especialista espanhol por, veja-se bem, falta de competências nesta área em Portugal. Tudo isto, saliente-se, quando a falta de uns bons óculos pode muito bem ser motivo de infertilidade.
Portanto, o que restava aos nossos três desgraçados? Seguramente que não seria irem queixar-se para a Assembleia da República, onde, a fazer fé num velho ditado, seriam reis, se é que alguém quer ser rei naquela casa. Como conclui JVM no seu artigo no Público, agora que foi banido do vocabulário parlamentar o termo "autista", seguir-se-ão "cego", "surdo", "mudo" e "coxo". Assim, qualquer português com um problema sério de saúde e que não conheça um espanhol competente ter-se-á que ir queixar para outro lado ou resolver os problemas por si, não pode contar com o Estado, parlamentares incluídos.
Aliás, quem conhece a nossa Assembleia sabe que para ela os problemas são resolvidos fazendo uma lei ou uma recomendação ao Governo, que é como quem diz, seguindo a estratégia da senhora da limpeza: varrendo tudo para debaixo do tapete. Até estou admirado, dado o pendor (ou furor) tecnológico dessa "casa" e o equipamento que lá foi agora instalado, não terem seguido outro rumo, mais digno do que proibir o uso de palavras que constam em qualquer dicionário. Como se pode conceber que na casa da liberdade haja agora restrições à liberdade de expressão? Não seria mais fácil deixar os nossos deputados exprimirem-se livremente ao microfone e aplicar um algoritmo informático de correcção das intervenções? Por exemplo, se um deputado diz a outro "Vá o meu caro colega à badamerda", ouvir-se-ia nas galerias "está na altura de Vossa Excelência se ausentar uns momentos do Hemiciclo"; ou se numa bancada um deputado gritar a outro: "Seu chulo!", soaria no sistema de som um: "Vossa Excelência tem interesses num negócio de infidelização do cliente."
Que têm em comum estas três histórias, para além de terem acontecido ao mesmo tempo? Um bando de ladrões que, acontecimento extraordinário, é preso de tal forma é incompetente? Um Ministério da Saúde que confia nos médicos nacionais ao ponto de procurar um estrangeiro? Um parlamento que é tão autista que, quando o País atravessa a pior crise económica em 35 anos, acredita que resolve algum problema banindo a palavra autista do seu vocabulário? Dir-se-ia que estamos em pleno Outono em Pequim, do Boris Vian, que, como é sabido, não aconteceu no Outono nem em Pequim, A diferença é que em Portugal a realidade ultrapassa a ficção.
Frederico Bastião
Frederico Bastião é Professor de Teoria Económica das Crises na Escola de Altos Estudos das Penhas Douradas. Quando lhe perguntaram por que é que alguém roubaria 20.000 euros em pares de óculos, Frederico respondeu: "Falta de visão."
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