A denúncia
"Na sexta-feira da semana passada, o Diário de Notícias publicou uma primeira página toda preta, dedicada a um único tema, como se tivesse havido uma revolução ou um terramoto. Estampado no negro, lia-se o seguinte título: ‘Assessor do Presidente encomendou caso das escutas’. A ilustrar a notícia, o jornal publicava uma fotografia de Fernando Lima, assessor de imprensa do Presidente da República, ocupando um quarto da página.
O destaque pareceu-me exagerado. Primeiro, os factos narrados na notícia reportavam-se a um ano e tal atrás; depois, não são propriamente decisivos para o país. Penso, ainda, que o rosto de Fernando Lima não era tão conhecido que justificasse um destaque tão grande.
Mas não nos antecipemos.
Comecemos por contar a história.
Há cerca de um ano e meio Cavaco Silva foi à Madeira em visita oficial (uma viagem ‘de risco’, porque Alberto João Jardim é sempre imprevisível) e a Presidência da República estranhou o comportamento de um membro da comitiva, por sinal assessor do primeiro-ministro.
Falando abertamente e sem rodeios, os colaboradores de Cavaco achavam que o assessor de Sócrates era um ‘espião’ infiltrado na comitiva presidencial.
Além disso, suspeitavam que o Palácio de Belém estivesse a ser alvo de escutas – o que não era propriamente extravagante, tendo em conta que o próprio procurador-_-geral da República admitira ao SOL a possibilidade de «ter o telemóvel sob escuta».
Pouco depois daquela visita, um editor do Público terá sido abordado por Fernando Lima, principal assessor de Cavaco, que lhe falou disto tudo: das suspeitas de escutas, do ‘espião’ na viagem à Madeira, etc.
O dito editor contactou então o correspondente do Público na Madeira através de e-mail, dando-lhe nota pormenorizada da conversa com Lima. Depois de uma rápida investigação, esse correspondente concluiu não haver matéria para publicação. E o jornal não publicou qualquer notícia.
Até aqui, não há nada de extraordinário a apontar. Perante uma suspeita avançada por uma fonte considerada credível, o jornal pediu ao seu correspondente no terreno para investigar alguns factos. E, não encontrando este matéria susceptível de fundamentar uma notícia, informou o jornal – que deixou cair o assunto.
Sucede que, passado mais de um ano, noutro contexto diferente – uma eventual cumplicidade entre assessores de Belém e o PSD –, o Público trouxe à baila essas suspeitas de escutas.
O assunto provocou uma certa agitação, o provedor dos leitores do Público analisou-o, moveram-se influências – e, finalmente, aparece publicado no Diário de Notícias o tal e-mail do editor do Público dirigido ao correspondente na Madeira. Neste e-mail, referia-se detalhadamente o encontro com Fernando Lima e descrevia-_-se o teor da conversa.
E aqui começam os problemas.
Logo à cabeça, é preciso perguntar o seguinte: o Diário de Notícias tinha o direito de publicar um e-mail interno de outro jornal? E, mesmo que o tivesse, seria isso correcto? A resposta é negativa.
A agravar o caso está o facto de se tratar de um e-mail onde se revelava a identidade de uma fonte de informação. Ora, ao revelar essa fonte, o DN admitiu que as fontes dos jornais podem ser denunciadas. E, nessa medida, admitiu que outros lhe façam o mesmo. Eu não acredito, entretanto, que a direcção do DN defenda este princípio.
Por exemplo: aceitaria o DN que outros publicassem o nome da pessoa que lhe facultou o e-mail interno do Público?
Tenho a certeza que não. Assim sendo, a direcção do DN precipitou-se ao denunciar a fonte de outro jornal. E deveria pedir desculpas públicas, para evitar que se instale na imprensa uma guerra suja e sem regras.
Este problema da protecção das fontes é decisivo.
É uma questão central do jornalismo.
Sem ela, o jornalismo de investigação acaba. Porquê? Porque se instalará o medo. A partir do momento em que começarem a ser reveladas as fontes dos jornais, instalar-se-á o medo. Ninguém quererá prestar informações aos jornalistas. Toda a gente os evitará: o empregado com medo do patrão, o funcionário público com medo do Governo, o juiz com medo da hierarquia, etc.
As injustiças passarão a não ser noticiadas e denunciadas – porque as pessoas começarão a ter medo de as denunciar, receando que os seus nomes venham a público e sofram represálias.
Ao contrário do que por vezes se diz – que a protecção das fontes estimula o anonimato –, não é de facto assim. As pessoas que prestam informações aos jornalistas não são anónimas: são pessoas que os jornalistas sabem quem são, que dão o rosto. Simplesmente pedem para não ser identificadas para não serem objecto de perseguição.
Por isso, insisto: o fim da protecção das fontes levará a um clima de medo generalizado, onde as prepotências na actividade pública e privada, as injustiças, muitas fraudes não serão denunciadas porque os possíveis denunciantes terão medo de se expor.
Cabe dizer, neste ponto do relato, que todos os assessores de políticos – do Governo, da oposição, de Câmaras Municipais, etc. – procuram influenciar os jornalistas. Tentam ‘vender o seu peixe’. Intrigam, fazem contra-informação. Na gíria, chama-se a isto ‘intoxicar’.
Todos os assessores procuram ‘intoxicar’ os jornalistas, com maior ou menor habilidade.
Cabe depois à imprensa seleccionar as informações, peneirá-las, só publicando aquelas que têm efectivamente consistência.
A responsabilidade da publicação de um determinado facto é, pois, sempre do jornal – não é dos assessores. O jornal tem responsabilidades perante a sociedade. Os assessores não têm: o seu papel é ‘venderem o peixe’ de quem lhes paga.
Não há, portanto, nada de extraordinário no facto de um assessor tentar influenciar um jornalista.
Este assunto só se tornou um ‘escândalo’ pelo facto de nele estar envolvido Cavaco Silva, através de um seu homem de confiança: Fernando Lima.
Havendo a ideia generalizada de que todos os assessores de políticos tentam intoxicar os jornalistas, pensa-se, no entanto, que Cavaco está noutro plano, que se situa acima da intriga. Que não actua nos bastidores. Ora, quando aparece um seu colaborador directo implicado numa história de contra-informação, é natural que as pessoas se surpreendam e se sintam chocadas.
É um pouco o desfazer da imagem que tinham do Presidente da República. Foi, aliás, sentindo isto que Cavaco substituiu o seu colaborador de há tantos anos.
Claro que há ainda um aspecto a considerar: haverá ou não escutas a Belém? Terão ou não os assessores do Presidente os telemóveis sob escuta? No tempo em que vivemos já nada nos espanta.
É certo que o Público ‘embrulhou’ muito mal a história, pelo que ela soou a ridículo. Parecia uma fantasia, com escutas e espiões a brincar. Mas não é totalmente impossível que neste clima de intriga e suspeição que se instalou no país haja a tentação de escutar tudo e todos – inclusive os inquilinos do Palácio de Belém.
Pelo menos, é possível que os assessores do Presidente acreditem nisso"
JAS
O destaque pareceu-me exagerado. Primeiro, os factos narrados na notícia reportavam-se a um ano e tal atrás; depois, não são propriamente decisivos para o país. Penso, ainda, que o rosto de Fernando Lima não era tão conhecido que justificasse um destaque tão grande.
Mas não nos antecipemos.
Comecemos por contar a história.
Há cerca de um ano e meio Cavaco Silva foi à Madeira em visita oficial (uma viagem ‘de risco’, porque Alberto João Jardim é sempre imprevisível) e a Presidência da República estranhou o comportamento de um membro da comitiva, por sinal assessor do primeiro-ministro.
Falando abertamente e sem rodeios, os colaboradores de Cavaco achavam que o assessor de Sócrates era um ‘espião’ infiltrado na comitiva presidencial.
Além disso, suspeitavam que o Palácio de Belém estivesse a ser alvo de escutas – o que não era propriamente extravagante, tendo em conta que o próprio procurador-_-geral da República admitira ao SOL a possibilidade de «ter o telemóvel sob escuta».
Pouco depois daquela visita, um editor do Público terá sido abordado por Fernando Lima, principal assessor de Cavaco, que lhe falou disto tudo: das suspeitas de escutas, do ‘espião’ na viagem à Madeira, etc.
O dito editor contactou então o correspondente do Público na Madeira através de e-mail, dando-lhe nota pormenorizada da conversa com Lima. Depois de uma rápida investigação, esse correspondente concluiu não haver matéria para publicação. E o jornal não publicou qualquer notícia.
Até aqui, não há nada de extraordinário a apontar. Perante uma suspeita avançada por uma fonte considerada credível, o jornal pediu ao seu correspondente no terreno para investigar alguns factos. E, não encontrando este matéria susceptível de fundamentar uma notícia, informou o jornal – que deixou cair o assunto.
Sucede que, passado mais de um ano, noutro contexto diferente – uma eventual cumplicidade entre assessores de Belém e o PSD –, o Público trouxe à baila essas suspeitas de escutas.
O assunto provocou uma certa agitação, o provedor dos leitores do Público analisou-o, moveram-se influências – e, finalmente, aparece publicado no Diário de Notícias o tal e-mail do editor do Público dirigido ao correspondente na Madeira. Neste e-mail, referia-se detalhadamente o encontro com Fernando Lima e descrevia-_-se o teor da conversa.
E aqui começam os problemas.
Logo à cabeça, é preciso perguntar o seguinte: o Diário de Notícias tinha o direito de publicar um e-mail interno de outro jornal? E, mesmo que o tivesse, seria isso correcto? A resposta é negativa.
A agravar o caso está o facto de se tratar de um e-mail onde se revelava a identidade de uma fonte de informação. Ora, ao revelar essa fonte, o DN admitiu que as fontes dos jornais podem ser denunciadas. E, nessa medida, admitiu que outros lhe façam o mesmo. Eu não acredito, entretanto, que a direcção do DN defenda este princípio.
Por exemplo: aceitaria o DN que outros publicassem o nome da pessoa que lhe facultou o e-mail interno do Público?
Tenho a certeza que não. Assim sendo, a direcção do DN precipitou-se ao denunciar a fonte de outro jornal. E deveria pedir desculpas públicas, para evitar que se instale na imprensa uma guerra suja e sem regras.
Este problema da protecção das fontes é decisivo.
É uma questão central do jornalismo.
Sem ela, o jornalismo de investigação acaba. Porquê? Porque se instalará o medo. A partir do momento em que começarem a ser reveladas as fontes dos jornais, instalar-se-á o medo. Ninguém quererá prestar informações aos jornalistas. Toda a gente os evitará: o empregado com medo do patrão, o funcionário público com medo do Governo, o juiz com medo da hierarquia, etc.
As injustiças passarão a não ser noticiadas e denunciadas – porque as pessoas começarão a ter medo de as denunciar, receando que os seus nomes venham a público e sofram represálias.
Ao contrário do que por vezes se diz – que a protecção das fontes estimula o anonimato –, não é de facto assim. As pessoas que prestam informações aos jornalistas não são anónimas: são pessoas que os jornalistas sabem quem são, que dão o rosto. Simplesmente pedem para não ser identificadas para não serem objecto de perseguição.
Por isso, insisto: o fim da protecção das fontes levará a um clima de medo generalizado, onde as prepotências na actividade pública e privada, as injustiças, muitas fraudes não serão denunciadas porque os possíveis denunciantes terão medo de se expor.
Cabe dizer, neste ponto do relato, que todos os assessores de políticos – do Governo, da oposição, de Câmaras Municipais, etc. – procuram influenciar os jornalistas. Tentam ‘vender o seu peixe’. Intrigam, fazem contra-informação. Na gíria, chama-se a isto ‘intoxicar’.
Todos os assessores procuram ‘intoxicar’ os jornalistas, com maior ou menor habilidade.
Cabe depois à imprensa seleccionar as informações, peneirá-las, só publicando aquelas que têm efectivamente consistência.
A responsabilidade da publicação de um determinado facto é, pois, sempre do jornal – não é dos assessores. O jornal tem responsabilidades perante a sociedade. Os assessores não têm: o seu papel é ‘venderem o peixe’ de quem lhes paga.
Não há, portanto, nada de extraordinário no facto de um assessor tentar influenciar um jornalista.
Este assunto só se tornou um ‘escândalo’ pelo facto de nele estar envolvido Cavaco Silva, através de um seu homem de confiança: Fernando Lima.
Havendo a ideia generalizada de que todos os assessores de políticos tentam intoxicar os jornalistas, pensa-se, no entanto, que Cavaco está noutro plano, que se situa acima da intriga. Que não actua nos bastidores. Ora, quando aparece um seu colaborador directo implicado numa história de contra-informação, é natural que as pessoas se surpreendam e se sintam chocadas.
É um pouco o desfazer da imagem que tinham do Presidente da República. Foi, aliás, sentindo isto que Cavaco substituiu o seu colaborador de há tantos anos.
Claro que há ainda um aspecto a considerar: haverá ou não escutas a Belém? Terão ou não os assessores do Presidente os telemóveis sob escuta? No tempo em que vivemos já nada nos espanta.
É certo que o Público ‘embrulhou’ muito mal a história, pelo que ela soou a ridículo. Parecia uma fantasia, com escutas e espiões a brincar. Mas não é totalmente impossível que neste clima de intriga e suspeição que se instalou no país haja a tentação de escutar tudo e todos – inclusive os inquilinos do Palácio de Belém.
Pelo menos, é possível que os assessores do Presidente acreditem nisso"
JAS
1 Comments:
Na realidade estamos muito perto da "ficção" d'O Impertinente:
«Era uma vez um sobreiro doente chamado PSD entalado entre dois eucaliptos: o velho eucalipto Cavaco Silva e o novo eucalipto Sócrates. O velho eucalipto seca o solo há 14 anos à volta do sobreiro e o novo eucalipto faz o mesmo vai para 5 anos. Se o novo eucalipto se aguentar até às eleições presidenciais, o velho eucalipto garantirá a morte do sobreiro nos 5 anos seguintes.»
Os eucaliptos deviam ser todos pura e simplesmente exterminados!
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