Auschwitz recebe as primeiras prisioneiras.
"Que um campo de concentração tenha se transformado num museu é sinal da elasticidade de nossa linguagem. “Museu”: Mona Lisa, gravuras, esqueletos de dinossauros, belezas, moedas romanas, resquícios de uma veste normanda, lojinha e café. E mais pinturas, os impressionistas, espada japonesa, pilha de cabelos de prisioneiros de Auschwitz, ruínas de crematório, escultura, monumento, memorial. Museu. De coleção de arte a abrigo de peças passadas, removidas do contexto original e reinseridas num novo cotidiano, o nosso, a rotina de turismos e visitas a esses novos espaços sagrados em que não se toca nas coisas que estão atrás das vidraças, em que se percorrem as salas em seqüência como num ritual, em que se abaixa a voz respeitosamente na presença quase mística dos tais objetos históricos. Que um campo de concentração tenha se transformado num museu é sinal do lugar da memória da nossa cultura. Não que esse lugar seja estável, garantido. Tantos campos foram arrasados, transformados, na queima de arquivo durante a guerra pelos nazistas ou no esforço de esquecer e recomeçar depois. Outros campos foram enviesados em propaganda política, esquecidos das vítimas reais: no bloco Comunista, pouca menção a raça, religião, a ciganos ou judeus; em lugar disso, monumentos dedicados aos prisioneiros políticos, aos mártires do socialismo.
Mas hoje os campos de concentração têm os portões abertos, diligentes, na Alemanha, na Polônia, na República Checa. Com bilheteria, mapa, visita guiada, website. E, enquanto alguns campos são chamados apenas de monumentos ou memoriais, outros, como Auschwitz – o maior, mais famoso, onde mais pessoas morreram – tem o nome de “museu”. A intenção é preservar a evidência e o conhecimento do passado para além de livros e documentos: manter, no espaço aberto e enorme, nos barracões sombrios, a impressão do horror. Mas, para algumas pessoas, o museu é a banalização do mal: embalando os vestígios de um crime imenso nos modos confortáveis, limpos e acessíveis de uma exibição; inserindo os locais do genocídio – esses cemitérios gigantes – na rota turística, seja o turismo eclético (Louvre-Parque do Asterix-castelos bávaros-loja de departamentos), seja o turismo-peregrinação dos lugares de memória (Berlim-Verdun-Nurenberg…).
Assim, antes de ir a Auschwitz, ouvi de muita gente blasé: “Auschwitz virou Disneylândia.” Comparar o museu a um parque temático não surpreende nesta era de exposições artísticas “blockbuster”. Seja como for, ouvi muitos relatos torcendo o nariz para os ônibus fretados despejando turistas em Auschwitz, para os adolescentes e famílias falando alto, rindo, fotografando, comprando e comendo sorvete de vendedores poloneses (a venda foi desde então proibida). Ainda que haja o risco de que tudo isso neutralize o efeito de uma visita a Auschwitz – a desejada reflexão crítica sobre o passado-presente-futuro, o sentido da tragédia – ainda assim, cheiram um pouco a esnobismo esses comentários. Afinal, quanto mais gente visitar Auschwitz, mais gente terá visto, mais gente terá tido a chance de aprender. Não é essa a intenção? E quem somos nós para determinar os modos certos de ver, o tempo a passar em frente a um painel informativo ou objeto exibido, a correta expressão facial diante de uma informação?
Fui a Auschwitz, assim, esperando as filas de jovens com chapéus de Mickey e latas de Coca-Cola sob o sol do verão polonês num sábado de junho. Em vez disso, cheguei ao campo com a névoa fina e cinza da matina polonesa, um punhado de pessoas em duos ou sozinhas como eu, esperando pelos cantos ainda escuros da recepção modesta do museu – esperando o museu abrir. E, no dia inteiro que passei lá, o museu-campo imenso quase deserto engoliu os visitantes em tantos pontos diferentes – exibições, barracões, ruínas, monumentos – que, apesar de ter avistado um dos tais ônibus fretados, estive sozinha por quase todo o tempo.
E foi o campo me engolir com o céu de chumbo, que verão polonês pode ser frio e sombrio. Não havia vendedores de sorvete, mas havia a minha fome, meu cansaço, depois de doze horas de trem vinda de Berlim. Será indecente ter fome em Auschwitz? Onde mais de um milhão de pessoas sofreu de fome, de dieta ínfima, além dos demais maus-tratos? Será indecente, agora, eu escolher com cuidado as palavras deste texto, neste meu capricho estilístico, atentando aos vocábulos, será isso indecente diante do horror e da feiúra do que se passou em Auschwitz? Não preciso repetir Adorno, que disse que depois de Auschwitz não há poesia. Mas, sessenta anos depois (cinquenta e oito quando visitei o campo), minhas palavras se interpõem, embaçando a história. A memória não é, nem pode ser, o mesmo que a história.
Porque eu no campo com meu dia intenso, caminhando na vastidão de Auschwitz I e Birkenau, em meio às ruínas, às dezenas de barracões, às exposições, à remontagem de câmaras de gás, aos trilhos reais dos trens, às colagens de fotografias dos mortos – eu, mesmo no meio do cenário do horror, mesmo diante dos fatos e datas e informações, não posso ter idéia concreta do que lá se passou. A experiência imediata é impossível – algo que esquecemos facilmente diante de exibições interativas, reconstituições históricas “fiéis”, parques temáticos, filmes de Hollywood. O conhecimento é mediado pelas palavras, fotografias e tabelas, pelas interpretações. Mas será que, entre a experiência impossível e o conhecimento mediado, haverá um meio termo? Aquele ponto onde a consciência do evento nos ataca como um soco no estômago, onde sentimos a dor – que é apenas a nossa dor, mas que talvez possa nos transcender, “empática” aos mortos, ao passado?
Passei o dia andando e tiritando de frio, a chuva me pegou no meio do campo aberto onde as ruínas se estendem num vazio de grama e mato crescido; passei o dia em pé, andando, os pés doendo, as lágrimas escorrendo fáceis diante de qualquer coisa: o crematório explodido pelos alemães para apagar seus tracos; a fotografia das famílias mortas, os nomes, os beliches apertados em que os prisioneiros dormiam. Tive fome e, vergonha das vergonhas, comi em Auschwitz, o lanche trazido do dia anterior.
Assim é: impossível viver no passado e esquecer da vida de hoje que corre e demanda de nós as coisas rotineiras que chamamos “banais”. Oswiécim, a cidade polonesa em que está Auschwitz, quer viver além do campo e além do peso da sua memória. Seus habitantes procuram outras atividades ou tentam vender sorvete no campo; não querem ser conhecidos pelos crimes passados do povo invasor. Por outro lado, é o campo que dá fama e turismo à cidade, fregueses para hotéis e restaurantes, passageiros para os motoristas de táxi.
Ir a Auschwitz, ver o campo do lado de dentro dos portões: é preciso, ao menos para quem pode. Mas é preciso deixar o campo, voltar pelas ruazinhas vazias até a pequena estação de trem, tentar se comunicar com os poloneses, pegar o trenzinho antigo, e mergulhar de novo no mundo. Daqui, do lado de fora, mas com a memória do que seria ter visto o mundo de dentro dos portões fechados de Auschwitz."
Daniela Sandler